quinta-feira, 21 de junho de 2007

DO QUE PASSEI EM MINHA MOCIDADE NESTE REINO ATÉ QUE ME EMBARQUEI PARA A ÍNDIA






Capitulo I

Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura, que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me , como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória. Porque vejo que não contente de me pôr na minha pátria , logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar ás partes da Índia, onde, em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos.
Mas, por outra parte, quando vejo que do meio de todos estes perigo se trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta de Lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura, que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Félix, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus e léquios nomeiam nas suas geografias por "pestana do mundo", como adiante espero tratar muito particular e muito difusamente. E daqui, por uma parte, tomem os homens motivo de se não desanimarem com os trabalhos da vida que deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhum, por grandes que sejam, com que não possa a natureza h8umana ajudada do favor divino, e por outra parte me ajudem a dar graças ao Senhor Omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos os meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida.
E tomando por princípio desta minha peregrinação o que passei neste reino, digo que depois que passei a vida até idade de dez ou doze anos na miséria e estreiteza da pobre casa de meu pai na Vila de Montemor-o-Velho, um tio meu, parece que desejoso de me encaminhar parece que para melhor fortuna, me trouxe á cidade de Lisboa e me pôs no serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz ilustres, parecendo-lhe que pela valia assim dela como deles poderia haver efeito sobre o que ele pretendia para mim. E isto era no tempo em que na mesma cidade de Lisboa se quebraram os escudos pela morte de El Rei D. Manuel, de gloriosa memória, que foi em dia de Santa Luzia, aos treze dia do mês de Dezembro do ano de 1521, de que estou bem lembrado_ e de outra coisa mais antiga deste reino me não lembro.
A intenção do meu tio não teve o sucesso que ele imaginava, antes o teve muito diferente, porque havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava ao serviço desta senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me foi forçado sair-me naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude. E indo eu assim, tão desatinado com o grande medo que levava que não sabia por onde ia, como quem vira a morte diante dos olhos e a cada passo cuidava que a tinha comigo, fui ter ao Cais da Pedra onde achei uma caravela de Alfama, que ia com cavalos e mercadorias de um fidalgo para Setúbal, onde naquele tempo estava El Rei D. João III , que santa glória haja, com toda a corte, por causa da peste que então havia em muitos lugares do Reino. Nesta caravela me embarquei eu, e ela partiu logo. E ao outro dia pela manhã, estando nós cerca de Sesimbra, nos acometeu um corsário francês e, abalroando connosco, nos lançou dentro quinze ou vinte homens, os quais, sem resistência nem contradição dos nossos, se assenhoraram do navio e depois que o despojaram de tudo que acharam nele, que valia mais de seis mil cruzados, o meteram no fundo. E a dezassete que escapámos com vida, atados de pés e de mãos, nos meteram no seu navio, com fundamento de nos levarem a vender a Larache, para onde se dizia que iam carregados de armas que os mouros levavam para negociar.
E trazendo-nos com esta determinação mais treze dias, banqueteados cada hora de muitos açoites, quis sua fortuna que no cabo deles, ao pôr do Sol, avistaram uma vela e seguindo-a aquela noite orientados pela sua esteira, como velhos oficiais práticos daquela arte, chegaram a ela antes do render do quarto da modorra, e dando-lhe três descargas de artilharia a abalroaram muito esforçadamente. E ainda que na defesa tivesse sido posta por parte dos nossos alguma resistência, nem isso bastou para que os inimigos deixassem de tomá-la, com morte de seis portugueses e dez ou doze escravos.
Era este navio uma formosa nau de um mercador de Vila do Conde que se chamava Silvestre Godinho, que outros mercadores de Lisboa traziam fretada de São Tomé com muito açucar e escravos, a qual os pobres roubados, que lamentavam a sua desventura, avaliavam em quarenta mil cruzados. Assim que estes corsários se viram com presa tão rica, mudando o propósito que antes traziam, fizeram-se de volta a França e levaram consigo alguns dos nossos para serviço da mareação da nau que tinham tomada. E aos outros mandaram uma noite lançar na praia de Melides, nus e descalços, e alguns com muitas chagas dos açoites que tinham levado, ls quais desta maneira foram ao outro dia ter a Santiago do Cacém, onde todos foram muito bem providos do necessário pela gente da terra, e principalmente por uma senhora que ai estava, de nome D. Brites, filha do conde de Vilanova e mulher de Alonzo Perez Pantoja, comendador e alcaide-mor da vila.
Depois que os feridos e os doentes foram convalescidos, cada um se foi para onde lhe pareceu que teria o remédio de vida mais certo, e o pobre de mim com outros seis ou sete tão desamparados como eu fomos ter a Setúbal, onde me caiu em sorte lançar mão de mim um fidalgo do mestre de Santiago de nome Francisco Faria, ao qual servi quatro anos, em satisfação dos quais me deu ao mesmo mestre de Santiago para seu moço de câmara, a quem servi um ano e meio. E porque o que então era costume dar-se nas casas dos príncipes me não bastava para minha sustentação, determinei embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões, disposto a toda a aventura, má ou boa, que me sucedesse.

5 comentários:

sem-se-ver disse...

e 'continua'?

apetece...

cs disse...

claro que sim.

é uma maravilha este Fernão ...

apetece voltar a ler tal é a forma como ele descreve a sua vida...

Uma edição antiga do Expresso com prefácio de Antonio José Saraiva, que o faz em memória do pai José Antonio Saraiva.
Logo verei se csgo aqui pÕR a capa.

bjos

sem-se-ver disse...

fernao, mentes? minto!

:D:D

s s, continue lá com esta obra deliciosa (cuidado com a SPA!!) lol

Anónimo disse...

Olhe do que a menina se foi lembrar…
Que grande obra e que grande homem! (o nosso país está a precisar de uns quantos Fernãos…).

Gostei de relembrar.
Continue!
Bj

Anónimo disse...

Fernão foi tão grande que custa acreditar.

ssv, ele não mentiu... a nossa pequenez é que o entende assim!

Bj

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