segunda-feira, 27 de agosto de 2007

CAPÍTULO V- COMO NOS PARTIMOS DO PORTO DE ARQUICO E DO QUE NOS SUCEDEU COM TRÊS BARCOS TURCOS QUE TOPÁMOS

Tornados nós ao porto de Arquico onde achámos os nossos companheiros, depois de estarmos ali mais de nove dias acabando de espalhar as fustas e provê-las do necessário, nos partimos numa quarta feira, dia seis do mês de Novembro do ano de 1537. Levámos connosco o Vasco Martins de Seixas com o presente e carta que a mãe de Preste João mandava ao governador, e levámos também um bispo abexim que estava para vir a este reino, e daqui ir a Santiago da Galiza, e a Roma, e daí a Veneza para daí passar a Jerusalém.
Velejando desde uma hora antes de amanhecer, saímos do porto com ventos bonançosos ao longo da costa até quase ao anoitecer, e estando já tão distante como a ponta de Gocão , antes de cegarmos ao ilhéu de Arrecife, vimos três barcos surtos, e parecendo-nos que seriam gelvas ou tarradas de outra costa, fomos guinando a elas á vela e a remo, porque já nesta altura o vento ia acalmando. Contudo, porfiámos tanto nesta ida que em espaço de quase duas horas nos chegámos tão perto delas que lhes enxergámos toda a aparelhagem dos remos, e reconhecemos que eram galeotas de turcos, pelo que nos tornámos a fazer na volta da terra com a maior pressa que pudemos, como quem desejava fugir do perigo em que já estava metido.
Os turcos, entendendo ou suspeitando da nossa determinação, deram em gritar muito e em menos de um credo se fizeram todos á vela, bordejando na nossa esteira com as velas quarteadas de cores e muitas bandeiras de seda: como o vento lhes ficava mais largo, foram logo senhores do barlavento, com o que sem nenhum trabalho vieram arribando sobre nós; e logo que foram a tiro de berço, dispararam em nós toda a artilharia e nos mataram logo nove homens e feriram vinte seis. E ficando com isto as nossas fustas de todo desfalcadas, porque a demais equipagem se lançou toda ao mar, os turcos se chegaram tanto a nós que das suas popas nos feriam a bote de lança. Dos nossos, nessa altura, ainda havia quarenta e dois que podiam pelejar. Estes, vendo que só no seu braço estava a sua salvação, com tanto ímpeto e esforço acometeram a capitania das três, em que vinha Soleimão Dragut, capitão-mor da frota, que a varreram logo toda da proa, com morte de vinte e sete janiçaros. Porém, acudindo-lhe então as outras duas , que estavam mais atrasadas um pouco atrás , lhe lançaram dentro quarenta turcos, com o qual socorro os nossos ficaram logo rendidos. E de tal maneira foram tratados que dos cinquenta e quatro que eram, só onze ficaram com vida, dos quais ao outro dia faleceram dois, que os turcos fizeram em quartos, para triunfo os levaram pendurados nas pontas das vergas até a cidade de Moca, cujo capitão era sogro deste Soleimão Dragut que nos tomara.
Quando ali chegámos estava já na praia com todo o povo para receber o genro e dar-lhe os parabéns pela vitória. E tinha consigo um caciz seu moulana que eles tinham por santo , por haver poucos dias que viera da casa do seu mafoma, o qual, em carro toldado de seda, com grandes bênçãos e mesuras provocava os ouvines a darem utos louvores a Mafamede pela vitória que tivera contra nós aquele turco.
Ali desembarcámos os nove que ficámos vivos, todos presos por uma corrente, e connosco também o bispo abexim, o qual ia tão ferido que ao outro dia faleceu com mostras de muito bom cristão, o que a todos os animou e nos consolou muito. A gente do povo, vendo-nos vir assim presos e conhecendo que éramos os cristãos cativos, foram tantas as bofetadas que os deram que em verdade afirmo que nunca cuidei em que escapássemos dali com vida, porque, pelo que o caciz dizia, ganhava indulgência plena em nos vituperarem e maltratarem. Desta maneira fomos levados por toda a cidade a modo de triunfo, com grandes gritas e tangeres, onde até as mulheres encerradas e os moços e meninos nos lançavam das janelas muitas panelas de urina por vitupério e desprezo do nome cristão
E já quase sol posto nos meteram numa masmorra que estava debaixo do chão, na qual estivemos dezassete dias com muita desventura e sofrimento, sem em qualquer deles nos darem mais que uma pouca de farinha de cevada para todo o dia, e algumas vezes grãos crus molhados em água, sem mais outra coisa nenhuma

2 comentários:

Anónimo disse...

Olha, olha... o nosso Fernão Mentes Minto!!

Já tinha pensado nele...

Amanha voltarei para o lêr, sim que isto requer tempo e já estou com soninho :)

té manhã
Jinhos

Anónimo disse...

"Ali desembarcámos os nove que ficámos vivos, todos presos por uma corrente, e connosco também o bispo abexim, o qual ia tão ferido que ao outro dia faleceu com mostras de muito bom cristão..."

Com mostras de muito bom cristão?? Como será?!!!

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